Desde 2001, quando o Novo Varejo criou o Dia do Balconista de Autopeças – data que se tornou lei municipal em São Paulo em 2010 –, o trabalho de quem atua no balcão mudou profundamente. A digitalização do varejo e o avanço da tecnologia na reposição obrigaram o vendedor de autopeças a se tornar mais técnico, conectado e estratégico, dominando catálogos eletrônicos, sistemas de compatibilidade, plataformas de e-commerce e atendimento multicanal.
Mesmo com toda essa transformação, um ponto permanece inalterado: o balconista continua sendo o principal elo entre as marcas e o consumidor final – seja o reparador independente, seja o proprietário do veículo. É ele quem traduz o portfólio dos fabricantes em solução prática no dia a dia da oficina e da frota.
Esse papel central impulsionou um movimento de valorização e qualificação da categoria, que vem ganhando corpo entre entidades, empresas e lideranças do aftermarket independente. Um dos marcos dessa agenda é a certificação profissional criada pelo Instituto da Qualidade Automotiva (IQA), há dois anos.
O programa combina avaliações técnicas e comportamentais para validar o conhecimento do balconista em peças, aplicações e atendimento. A proposta é, ao mesmo tempo, elevar o padrão de serviço e fortalecer o reconhecimento social e profissional do vendedor de autopeças. Desde 2023, o IQA já certificou 118 profissionais e projeta chegar a 500 até 2026, com apoio de redes, distribuidores e fabricantes.
Os números ainda são tímidos diante da dimensão do varejo automotivo, mas o projeto ganha tração. Para o superintendente do IQA, Alexandre Xavier, esse ritmo faz parte da curva natural de maturação de programas de certificação. “Esse número é aquém do que desejamos, mas expressivo para um momento de sensibilização, e nos motiva ver que a certificação mostra consistência no aumento de interesse do mercado. Muitas redes e distribuidores têm estimulado suas equipes a buscar esse reconhecimento, justamente porque percebem o impacto positivo que a capacitação tem no desempenho das vendas e na satisfação dos clientes”, afirma.
Nesse contexto, as parcerias com empresas e distribuidores têm sido decisivas para acelerar a iniciativa. A G&B Distribuidora, por exemplo, já certificou 30 vendedores em Guarulhos. A MTE-Thomson e o projeto Oficina do Saber também oferecem caminhos de certificação gratuita, ampliando o alcance do programa.
“Percebemos que as duas dinâmicas impulsionam o interesse pela certificação. De um lado, o próprio mercado exige capacitação constante, e o vendedor que quer se destacar precisa estar em permanente atualização, buscando certificações reconhecidas. Isso o diferencia e traz mais confiança para o cliente e para a empresa”, complementa Xavier.
Outra frente de atuação do IQA é a presença em grandes eventos do aftermarket para falar diretamente com os balconistas. Na Autonor 2025, em setembro, o instituto montou um espaço em que os profissionais puderam fazer a prova gratuitamente, durante a feira. A ação ainda não gerou um salto imediato no volume de certificados, mas, segundo Xavier, ajuda a construir o ambiente necessário para um crescimento mais forte nos próximos anos.
Balconistas do Brasil: como a capacitação entra na rotina
André Fernandes Santana, Referência Autopeças – Bezerros (PE)
“Desde que entrei no setor, participo em média de 3 a 4 capacitações por ano, entre cursos técnicos, treinamentos de vendas e eventos. A atualização constante é essencial, tanto para oferecer um atendimento de qualidade quanto para acompanhar a evolução dos produtos e das tecnologias automotivas. Quem mais me incentivou a buscar capacitação foi o próprio mercado, que exige conhecimento técnico e postura comercial, obrigando você a sair da zona de conforto e estudar mais, para não ficar para trás.”
Ryquelme Gama de Souza, Lemarauto Auto Peças – São João de Meriti (RJ)
“Participo em média de 3 a 5 capacitações por ano. São treinamentos técnicos, de atendimento ao cliente e atualizações sobre produtos e sistemas da empresa. Todas foram fundamentais para meu crescimento profissional, porque ampliam meus conhecimentos e ajudam a lidar melhor com os desafios do dia a dia.”
Caio Duarte Cavalcante, Auto Peças Guaxinim – Mombaça (CE)
“A maior capacitação vem do dia a dia no balcão. Desde a pré-adolescência, tive a oportunidade de trabalhar ao lado de grandes profissionais. Quando não conseguia resolver algo com o cliente, esperava ele sair e ia estudar o assunto até entender bem. Isso me ajudou demais. Levei muitos catálogos de peças para casa e passava horas lendo, analisando imagens, descrições e aplicações. Viraram uma das minhas principais fontes de aprendizado e consulta.”
Nathan Gustavo Zagui, Auto Peças Zagui – Campo Limpo Paulista (SP)
“No início da minha trajetória, fazia em média cinco cursos por ano e concluí cerca de 15 nos três primeiros anos, entre treinamentos de fabricantes e cursos de administração. O que mais me ajudou foi aprender sobre processos gerenciais da loja. Para o balcão, confesso que ainda não encontrei um curso realmente convincente.”
Digitalização: do balcão físico ao atendimento 100% conectado
Entre as competências que hoje são quase obrigatórias para qualquer balconista, o domínio de canais como WhatsApp, marketplaces e e-commerce se destaca. A habilidade de atender bem à distância, interpretar fotos, vídeos, descrições e preencher anúncios com precisão técnica passou a ser tão importante quanto conhecer o catálogo físico.
Esse movimento não é exclusivo do setor de autopeças. Dados da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) sobre “O Varejo e o Uso de Ferramentas Digitais” mostram que 85% dos empreendedores brasileiros já usam o WhatsApp como principal canal de contato com o cliente, seguido pelas redes sociais (67%) e por sites próprios (31%). O estudo revela ainda que 76% das vendas de pequenas e médias empresas envolvem ao menos uma etapa digital – atendimento, negociação ou pagamento.
No varejo de autopeças, o cenário é ainda mais intenso. O segmento entrou de vez no radar de gigantes do comércio eletrônico, como Mercado Livre e Shopee. Se antes esses canais se concentravam em acessórios e itens genéricos, agora avançam também em componentes de segurança e itens de “mecânica pesada”, pressionando as lojas tradicionais a se adaptarem.
Para o balconista, isso significa uma mudança estrutural na rotina: boa parte das interações com clientes e fornecedores acontece por meios digitais, e a capacidade de interpretar dados de catálogo, validar aplicações e prestar suporte remoto é hoje fator crítico de competitividade. Não à toa, muitos profissionais ouvidos pela série “Balconistas do Brasil” resumem: “o WhatsApp é o novo balcão”.
O WhatsApp como aliado, não como peso extra
Thiago Secchi, Secchi Autopeças – Chopinzinho (PR)
“Hoje, nossa relação com ferramentas digitais, como o WhatsApp, é fundamental. Os clientes enviam fotos, placas dos veículos e áudios, o que permite ao mecânico pedir a peça com assertividade sem sair da oficina. Isso reduziu bastante os transtornos que tínhamos antes.”
Jessifran Ferreira Sales, Truckão – Fortaleza (CE)
“Uso o WhatsApp para falar com clientes, mandar orçamentos, fotos de peças e até fechar vendas rápido. Atendo no balcão físico e cuido de pedidos online ao mesmo tempo. Facilita muito a vida.”
Graziela Abreu, Disape – Aparecida de Goiânia (GO)
“O WhatsApp veio para agregar na venda, como ferramenta fundamental. Com ele, o atendimento é mais rápido e preciso, mas não substitui o vínculo com o cliente. Visitar o comprador e conhecer o potencial de compra continua essencial.”
Brayan Santos Gomes, Piraúba Autopeças – Piraúba (MG)
“O WhatsApp facilitou muito: hoje, entre 80% e 85% das nossas vendas acontecem por ele. A troca de imagens ajuda demais e traz muito mais assertividade na hora de vender.”
Do balcão à sociedade: o balconista como empreendedor em potencial
O empreendedorismo nunca esteve tão presente na economia brasileira. Segundo o Sebrae, a taxa total de empreendedorismo no país chegou a 33,4% da população adulta em 2024, ante 30,1% no ano anterior. Os empreendedores iniciantes representam 20,3% da população; os estabelecidos, 13,2%. E quase metade dos brasileiros (49,8%) afirma ter intenção de abrir um negócio próprio em até três anos.
No universo das autopeças, essa tendência ganha contornos muito nítidos. O balconista, historicamente ligado ao atendimento técnico e à intermediação entre fabricantes, distribuidores, mecânicos e frotistas, surge cada vez mais como candidato natural a empreendedor. Seu conhecimento sobre mix de produtos, margens, giro de estoque, perfil de clientes e operação diária da loja é um ativo raro.
Não por acaso, crescem os casos de balconistas que deixam o emprego para abrir o próprio negócio. Um exemplo simbólico é o de Yago Leite. Ex-balconista, hoje empresário e influenciador com mais de 900 mil seguidores no Instagram, ele representa uma nova geração da reposição automotiva. Começou em oficina, passou anos no balcão e, aos poucos, transformou a experiência prática em empresa própria e em uma plataforma de comunicação de grande alcance.
“Isso acontece porque o balconista vive o negócio de perto. Com o tempo, ele percebe que poderia vender ‘para ele mesmo’ e não só para a empresa onde trabalha”, afirma Yago. Sua leitura ajuda a entender um fenômeno mais amplo: na autopeças, o balconista é um observador privilegiado. Acompanha preços, velocidade de reposição, comportamento dos reparadores, gargalos logísticos e oportunidades de mercado. Combinado ao domínio técnico e ao relacionamento com a clientela, esse repertório é uma base robusta para quem decide empreender.
A digitalização do setor e o crescimento dos marketplaces também reduzem barreiras de entrada. Abrir uma loja hoje – física, virtual ou híbrida – exige menos capital inicial e muito mais conhecimento operacional, algo que muitos balconistas já acumularam ao longo dos anos. Modelos que integram loja física, WhatsApp e e-commerce favorecem ainda mais quem domina o atendimento multicanal.
Na prática, o que antes era visto apenas como uma função de intermediação no varejo automotivo começa a ser reconhecido como o primeiro passo de uma jornada empreendedora.
Três trajetórias de balconista a dono de autopeças
André Keppe, Képecas Auto Peças – Curitiba (PR)
“Trabalho com autopeças desde os 13 anos, quando ganhei de presente de aniversário um emprego temporário. Hoje tenho 43 e continuo vendendo peças. Passei por várias lojas e setores dentro de autopeças até abrir minha própria empresa. Em 2021, saí da loja onde trabalhava e minha esposa, Keilla, deixou o setor bancário depois de 15 anos. Com muita coragem, compramos uma loja em Curitiba. Lá, além de proprietário, sigo atuando como balconista em vários momentos.”
Jean George da Silva Ferreira, Jahu Auto Peças Nacionais e Importados – Jaú (SP)
“Minha história é curiosa, porque até hoje nunca fui oficialmente contratado pela empresa. Eu fazia um curso no Senac, após ser demitido de outra empresa da cidade, quando soube de uma oportunidade na loja. Fui falar com um dos sócios, mas não tive retorno. Mesmo assim, apareci lá, quando a loja ainda estava sendo montada, e fui ficando. Comecei nas entregas, depois estoque, cobrança, atendimento telefônico, cotações, caixa… Até que comecei a vender, criei minha clientela e me destaquei. Ganhei confiança. Passei a observar o giro da loja e a fazer compras. Quando os sócios tiveram um problema e desfizeram a sociedade, surgiu a chance de me tornar um deles. Hoje, mantemos uma empresa sólida na cidade e na região.”
Luiz Cloni Pagani Garcia, Garcia Peças Diesel – Viamão (RS)
“Desde pequeno eu gostava de comprar peças com meu pai, que era agricultor e plantava arroz. Aos 16 anos, comecei a trabalhar com ele na lavoura e, aos 18, assumi as compras de peças dos tratores. Sempre sonhei em ter uma autopeças, mas nunca levava a ideia adiante. Tínhamos um caminhão grande e eu dizia: ‘Se tudo der errado, viro caminhoneiro’. No fim, a palavra tem força e tudo deu errado. Virei caminhoneiro por um dia. Precisei de peças para o meu caminhão e não encontrei. Tive que ir três vezes até a cidade vizinha. Decidi então que as pessoas da minha cidade não precisavam passar por isso. Abri minha autopeças sozinho, sem entender quase nada de peças de caminhão, sem dinheiro, só com balcão e prateleiras, trabalhando por encomenda e atuando como balconista. Hoje, seis anos depois, seguimos vendendo. Temos duas lojas, nove funcionários e mais de um milhão de reais em estoque.”















