Agência EY
“Quando me vi mais perto da morte, optei pela mobilidade urbana sustentável.” Desde que descobriu que sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica, a ELA, doença neurodegenerativa irreversível, Luis Henrique da Cruz Ribeiro, mais conhecido como Ricky Ribeiro, tomou uma decisão: contribuir para um bem comum e criar um portal de mobilidade urbana, o Mobilize Brasil. “Na virada de 2010 para 2011, parei para me questionar sobre o que desejava fazer com minha vida. Estava há mais de dois anos me dedicando a diversos tratamentos para tentar deter o avanço da doença. Queria fazer algo que me fizesse sentido, queria me sentir útil, quem sabe deixar um legado”, conta. Passou a pesquisar sobre mobilidade urbana. Ao se deparar com muitas informações dispersas, teve a ideia de criar um portal para agregar, produzir e disseminar conteúdo relacionado à mobilidade urbana sustentável.
Ricky já estava com dificuldade para falar e tinha movimentos em apenas dois dedos, o que lhe permitia usar o computador com limitação, quando começou a desenvolver o portal. Mas desde julho daquele ano usa um equipamento chamado Tobii Eye, que lhe permite escrever com os olhos. Por meio desse leitor óptico, consegue acessar a internet, abrir e-mails, escrever, fazer planilhas e apresentações.
Lançado em 2011, o portal acaba de divulgar, em parceria com a consultoria EY, o Mobilize 2022, um levantamento realizado nas 27 capitais brasileiras sobre avanços e retrocessos na mobilidade urbana sustentável. De acordo com Ricky, em muitas cidades, a crise nos transportes públicos, que já vinha acontecendo nos últimos anos, se agravou com a pandemia da Covid-19. “Nesses dez anos, nem mesmo os planos de mobilidade – obrigatórios para cidades com mais de 20 mil habitantes – foram completados dentro do prazo (2015) fixado inicialmente pela legislação”, explica.
No mês em que se comemora o Dia Nacional da Pessoa com Deficiências, Ricky concedeu entrevista à Agência EY. Além do Mobilize Brasil, é membro da equipe de Sustentabilidade Corporativa da EY, possui um boletim semanal sobre mobilidade urbana sustentável na Rádio Trânsito de São Paulo e é coautor do livro “Movido pela Mente”.
Na semana passada foi comemorado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. O quão fundamental é o conceito de acessibilidade e mobilidade sustentável para a inclusão das pessoas com deficiência?
A acessibilidade e a mobilidade urbana são questões fundamentais para a inclusão, pois garantem o direito de ir e vir das pessoas com deficiência, possibilitando o acesso a oportunidades de emprego, estudos, lazer e moradia. Não só para pessoas com deficiência, mas também para idosos, crianças, mães com carrinho de bebê, pessoas com malas e mesmo adultos saudáveis. Eu conheço muita gente que sofreu queda em calçadas esburacadas e se lesionou gravemente, mesmo gozando de um ótimo condicionamento físico. O Brasil avançou em relação à legislação, com a Lei Brasileira de Inclusão e a Política Nacional de Mobilidade Urbana, mas, infelizmente, há um abismo entre as leis e a realidade. Tirar do papel e colocar em prática os recentes avanços legais é um grande desafio.
Mesmo imobilizado em decorrência de uma doença degenerativa, você criou o primeiro portal inteiramente dedicado ao tema de mobilidade urbana sustentável do Brasil. Como surgiu a ideia e como a colocou em prática?
Na virada do ano de 2010 para 2011 parei para me questionar sobre o que desejava fazer com a minha vida. Estava há mais de dois anos me dedicando a diversos tratamentos para tentar deter o avanço da doença. Eu queria fazer algo que me fizesse sentido, me sentir útil para a sociedade novamente, quem sabe deixar um legado. Passei a pesquisar bastante sobre mobilidade urbana, tema que me fascinava havia alguns anos. Ao me deparar com muitas informações dispersas, me veio a ideia de criar um portal para agregar, produzir e disseminar conteúdo relacionado à mobilidade urbana sustentável. Na hora, também tive a ideia do nome. Seria Mobilize, palavra que juntava mobilidade e mobilização, dois conceitos muito importantes na minha proposta.
Por que a opção pela mobilidade urbana sustentável?
Eu tenho outros temas de interesse, vinha atuando com projetos de educação e gostava bastante de ações de preservação ambiental, mas, desde que morei em Barcelona, mobilidade urbana e urbanismo se tornaram uma grande paixão, e isso tem uma explicação. Minha vida mudou radicalmente para melhor na Europa, muito por causa da disposição urbana da cidade e da grande oferta de mobilidade. No Brasil, eu morava em um bairro afastado de São Paulo, mas fazia faculdade na região da Paulista. Eu acabava dirigindo, na média, 70 quilômetros por dia. Em Barcelona eu também estudava em outra cidade, mas lá eu ia pedalando até a estação, colocava a bicicleta dentro do trem, e continuava pedalando numa região proibida para carros, com diversos pedestres e uma praça repleta de crianças correndo. Para quem antes passava horas dirigindo, fiquei meses sem entrar em um carro nem uma única vez. E não sentia nenhuma falta. Ao contrário, estava mais saudável, com muita disposição e, principalmente, mais feliz. Eu queria que todos tivessem a oportunidade de vivenciar os mesmos benefícios e estilo de vida que eu tinha experimentado durante dois anos e meio. Por isso, quando voltei de Barcelona, sempre que andava pelas ruas do Brasil, fosse em São Paulo, Recife, Rio, ou em outra cidade, de bicicleta, ônibus ou a pé, eu ia projetando mentalmente ciclovias, estruturas para o transporte coletivo e, é claro, elas, as calçadas. Então, ao escolher um tema para me dedicar quando me vi mais perto da morte, não tive dúvidas que seria mobilidade urbana sustentável. Além disso, mobilidade urbana é um tema transversal, que envolve inúmeros outros fatores ambientais, sociais e econômicos.
A quem é dedicado e quais são os planos do Mobilize para o futuro?
O Mobilize é dedicado a todo cidadão brasileiro que vive ou trabalha em qualquer cidade afetada pela imobilidade do sistema viário, que prioriza o transporte individual em detrimento do transporte público, da falta de calçadas, da falta de estruturas cicloviárias, enfim, da falta de visão sistêmica para a problemática da mobilidade urbana sustentável. Para nossa surpresa, gestores públicos e governos são grandes usuários e beneficiários do conteúdo do portal, pelos estudos gerados, pesquisas publicadas e campanhas conduzidas. Contamos também com estudantes, professores, entidades sociais e jornalistas que usufruem do conteúdo publicado como fonte de informação, conhecimento e referência na temática. Além do público do portal, as ações do Mobilize Brasil são voltadas para pedestres, cadeirantes, ciclistas e usuários de transporte coletivo, inclusive a população de baixa renda das cidades grandes e médias, que muitas vezes não tem espaço para lutar por melhores condições de calçadas e transporte público de qualidade.
Os planos para o futuro do Mobilize estão focados na produção de conhecimento, por meio de cursos e publicações. Esperamos seguir contribuindo com o debate público sobre o tema no Brasil, e influenciando políticas públicas para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Como a sociedade civil e órgãos públicos e privados podem se envolver e colaborar em prol desse movimento?
De diversas formas. As organizações e os movimentos ativistas têm um importante papel de prover conhecimento sobre o tema, fomentar o debate público, disseminar uma cultura cidadã participativa em prol da melhoria da qualidade de vida nas cidades, pressionar governos para implantarem políticas públicas efetivas de mobilidade urbana sustentável, e realizar pequenas intervenções nas cidades. Os órgãos públicos e privados podem realizar ações para tornar mais sustentáveis os deslocamentos de seus profissionais. Medidas como implantação de programas de carona solidária, disponibilização de fretados, instalação de bicicletários e vestiários, incentivo financeiro a quem vai trabalhar de bicicleta, divulgação das melhores rotas para andar a pé, e subsídio ao transporte público. A empresa também pode pressionar a administração pública local por melhorias nas condições de mobilidade em seu entorno, estimular o trabalho à distância para evitar deslocamentos, flexibilizar os horários de entrada e saída, limitar e reservar vagas de estacionamento para quem participa da carona solidária, e utilizar o serviço de entregas por bicicleta, no lugar de motoboys, além de garantir acessibilidade em suas dependências.
O Mobilize está fazendo 11 anos. Você diria que as cidades brasileiras melhoraram em mobilidade urbana ao longo deste período?
O Mobilize está completando 11 anos agora em setembro. Algumas áreas da mobilidade urbana tiveram uma melhora significativa, outras não. No geral, as maiores mudanças em pouco mais de uma década ocorreram fora da esfera pública local, que é a principal responsável por gerir as formas de deslocamentos da população. Na minha opinião, as empresas foram as grandes responsáveis por alterações na circulação de pessoas e de mercadorias, para o bem e para o mal, nos últimos dez anos. Novas tecnologias e aplicativos ditaram tendências e mudaram comportamentos tanto no transporte individual, como no transporte coletivo e nos modos ativos.
Muitas prefeituras conseguiram aumentar significativamente a quilometragem de suas estruturas cicloviárias, o que, sem entrar no mérito da qualidade, é uma boa notícia. Além disso, houve importantes avanços, por exemplo, em relação à legislação federal voltada para o tema. Três bons exemplos são: a Lei 12.587/2012, que define a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão, e o fato de o transporte ser incluído como direito social na Constituição. Apesar do avanço legal, na prática pouco melhorou para os pedestres e usuários de transporte coletivo nas cidades do país. As calçadas seguem, via de regra, com péssima qualidade e um obstáculo para a mobilidade a pé.
Resumindo, no geral houve um avanço tímido, abaixo do desejado, mas também alguns retrocessos, principalmente na gestão do transporte coletivo. Mas para concluir com uma mensagem positiva, eu tenho esperança de que melhore bem mais nos próximos anos, já que na última década o movimento que luta por cidades mais humanas e sustentáveis se fortaleceu. É visível que aumentou a conscientização das pessoas em relação ao tema, o espaço na mídia e o número de organizações que atuam com a causa, como o Mobilize.
Quais ações públicas de mobilidade geraram efeitos positivos nas cidades?
Eu sou fã de ações voltadas para estimular os deslocamentos ativos, pensando em pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência, até porque muitas vezes são soluções simples, pouco custosas, que fazem uma grande diferença. Ações como a criação de corredores de calçadas acessíveis, padronizadas, para futuramente formar uma ampla rede, a implantação de estrutura cicloviária, a diminuição da velocidade máxima em determinadas vias, a melhora na segurança viária, entre outras.
Em relação ao transporte público, uma boa opção são os bondes modernos, conhecidos como VLT, sigla para Veículo Leve sobre Trilhos. Ele pode circular pela grama, fazendo com que seja viável sem suprimir uma faixa de rolagem nem descaracterizar o canteiro central de uma avenida, diferente de corredor de ônibus ou BRT. Além disso, o VLT é mais bonito, silencioso, polui menos, se integra melhor ao ambiente urbano e é capaz de atrair mais gente ao transporte coletivo. No Rio de Janeiro, onde está em operação desde 2016 na região central, a avaliação dos usuários é bem alta em comparação com outros transportes coletivos. Eu andei bastante de VLT quando morava em Barcelona, inclusive levando minha bicicleta.
O Mobilize Brasil – em parceria com a EY – acaba de concluir um levantamento nas 27 capitais brasileiras trazendo um panorama do que mudou nos dez anos da lei de mobilidade urbana. O que você destaca do levantamento? Qual é a conclusão dele: houve avanços?
Em comparação com nosso primeiro trabalho do tipo, o Estudo Mobilize 2011, a dificuldade de se obter dados e informações de qualidade sobre mobilidade urbana continua grande em muitas prefeituras. Mas avanços em organizações da sociedade civil que atuam com o tema, e a criação de um sistema de informações em mobilidade urbana pelo governo federal, tentam compensar esta carência. Mas nós também fomos mais ambiciosos, analisando um grande número de indicadores, realizando avaliações em campo com parceiros locais e enviamos formulários às prefeituras de todas as capitais. A EY teve um papel fundamental no tratamento de dados e na criação de um painel interativo com os resultados, desenvolvido pela área de DDA (Digital, Data & Analytics), comandada pelo sócio Luiz Covo.
Houve avanços, mas também alguns retrocessos. Em muitas cidades, a crise nos transportes públicos, que já vinha acontecendo nos últimos anos, se agravou com a pandemia da Covid-19. Nesses dez anos, nem mesmo os planos de mobilidade – obrigatórios para cidades com mais de 20 mil habitantes – foram completados dentro do prazo (2015) fixado inicialmente pela legislação. Entre as capitais do país, 14 delas têm planos em vigência (Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Fortaleza, João Pessoa, Manaus, Natal, Rio Branco, Rio de Janeiro, São Luís, São Paulo, Salvador e Porto Alegre), sete estão trabalhando na elaboração do documento (Cuiabá, Goiânia, Macapá, Maceió, Palmas, Porto Velho e Recife), cinco estão revisando seus planos (Aracaju, Curitiba, Florianópolis, Teresina e Vitória), e uma (Boa Vista) ainda não iniciou a preparação do plano de mobilidade. Vale a pena conhecer mais o Estudo Mobilize 2022, ver o relatório e entender um pouco sobre a situação da mobilidade urbana no Brasil.