Investigação revela rede por trás do comércio ilegal de autopeças

Rede criminosa desmantelada no comércio ilegal de autopeças

Impactos da Regulação dos Desmanches no Mercado de Autopeças

A comercialização de autopeças ilegais representa um desafio histórico para o mercado de reposição automotiva no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), o setor perde cerca de R$ 12 bilhões por ano devido à pirataria, posicionando-se entre as dez maiores vítimas desse tipo de crime no país.

Em março deste ano, o economista PhD e pesquisador do Insper, André Mancha, publicou um estudo inédito que analisa os efeitos da regulação dos desmanches. O trabalho destaca o papel de muitos desses estabelecimentos como intermediários entre o roubo de veículos e a venda de autopeças ilegais, oferecendo uma visão clara sobre o ciclo que conecta crimes patrimoniais urbanos, desmontagem irregular e a reposição clandestina de peças — um problema sério que impacta diretamente o Aftermarket Automotivo.

A pesquisa demonstra que a adoção de uma regulação mais rigorosa para os desmanches tem contribuído para desarticular essa cadeia criminosa. A partir da experiência do estado de São Paulo, que implementou a Lei do Desmonte em 2014, observa-se uma redução de 34% nos roubos de veículos em dois anos, com queda ainda mais significativa nos bairros com maior concentração de desmontes.

Embora a relação entre roubo e comércio de peças piratas seja frequentemente mencionada, raramente é comprovada de forma clara — lacuna que o estudo de Mancha supera por meio de dados e análise estatística aprofundada.

Utilizando regressão econométrica, o pesquisador avaliou a correlação entre a presença de desmanches e a incidência de roubos em diversas regiões paulistas. Os resultados indicam que a existência de um desmanche adicional em uma localidade está associada a um aumento de até 0,7 roubo de veículo por mês — mesmo após controlar variáveis como renda média, densidade populacional e efetivo policial. Essa é uma evidência estatística robusta de que desmontes ilegais funcionam como facilitadores do crime patrimonial.

O estudo também diferencia os efeitos entre desmanches credenciados e irregulares. Nas regiões com maior presença de desmontes ilegais, o impacto nos índices de roubo é mais expressivo. Em contrapartida, áreas com fiscalização mais rigorosa e maior formalização empresarial apresentam quedas muito maiores nos roubos.

Um dos impactos mais significativos dessa cadeia para o Aftermarket Automotivo é a concorrência desleal que ela gera para distribuidores e varejistas que atuam dentro da lei, já que muitos furtos e roubos abastecem justamente o comércio ilegal de autopeças.

Lei do Desmonte paulista como referência nacional

Os ganhos obtidos por São Paulo após 10 anos da Lei do Desmonte foram o foco principal do estudo do Insper. A legislação obriga os desmanches a se registrarem junto ao Detran-SP, adotarem sistemas de rastreabilidade, emitirem nota fiscal e cumprirem normas ambientais e urbanísticas.

Em entrevista, Eric Wetter, diretor de Gestão Regulatória do Detran-SP, explicou os motivos do sucesso dessa regulação. “A rastreabilidade é essencial para garantir ao consumidor a procedência das peças. Hoje, contamos com um sistema que cruza informações e possibilita maior controle sobre o que é comercializado”, afirmou. Ele ressaltou que o selo de rastreabilidade é obrigatório por lei e que denúncias podem ser feitas na plataforma FalaSP.

O Detran-SP intensificou as fiscalizações para assegurar o cumprimento das normas. Em julho, realizou operação conjunta com a Polícia Militar e Civil na capital, vistoriando 24 desmontes: 15 estavam fechados, um foi lacrado e três autuados por irregularidades como falta de credenciamento, ausência de nota fiscal e comercialização de peças sem rastreabilidade.

Segundo Wetter, essa atuação não é pontual, mas parte de um serviço contínuo de inteligência. “Temos mais de 800 pontos de fiscalização integrados às bases da Polícia Militar, permitindo monitoramento inteligente das irregularidades”, destacou, acrescentando que essa infraestrutura, somada à análise de dados, é fundamental para uma fiscalização mais eficaz.

Embora a Lei do Desmonte tenha sido eficaz para desestimular o comércio ilegal, ainda não erradicou completamente o problema. A atuação clandestina segue sendo um desafio, e a informalidade permanece como obstáculo — questão que, segundo Wetter, junto à consolidação da cultura da rastreabilidade, é um dos pilares no combate à pirataria de peças usadas.

Sucesso paulista inspira, mas ainda não é padrão nacional

Um ponto preocupante destacado pela pesquisa de André Mancha é que alguns estados brasileiros ainda não exigem credenciamento nem realizam fiscalização sistemática, criando “zonas cinzentas” para desmontes ilegais. “Os resultados obtidos poderiam ser replicados em outras regiões, desde que haja empenho em disseminar boas práticas e estruturar a atuação institucional”, afirmou o pesquisador.

Questionado sobre a necessidade de uma política nacional integrada contra a pirataria de autopeças, Eric Wetter enfatizou sua importância, pois a existência de desmontes ilegais próximos pode aumentar o número de roubos em estados com fiscalização eficiente. “Por isso, temos compartilhado as boas práticas de São Paulo com outros Detrans, o Denatran e estados das regiões Nordeste e Norte. Muitos vêm até aqui para entender nosso modelo”, relatou.

Mais que combater o crime, é preciso estruturar o mercado. A luta contra a venda de autopeças ilegais é uma questão de segurança pública e também de fortalecimento do setor automotivo. Peças de origem duvidosa prejudicam a credibilidade, receita, segurança e confiança do mercado de reposição.

Portanto, a consolidação de um ambiente mais formal e seguro depende não só da repressão aos canais ilegais, mas também de políticas que incentivem a adoção de boas práticas. Como conclui o estudo de André Mancha, “uma política pública bem desenhada tem o poder de alterar os incentivos do crime, e isso precisa ser aproveitado pelo poder público”.

É momento de transformar diagnósticos em estratégias e experiências bem-sucedidas em políticas estruturantes. A regulação eficaz dos desmanches é um passo essencial — mas só será definitiva se implementada em âmbito nacional, com fiscalização contínua, cooperação entre esferas governamentais e engajamento ativo da sociedade civil e do mercado. Só assim o Brasil poderá desmontar a engrenagem que alimenta a pirataria de autopeças.

Varejo de autopeças é um dos segmentos mais impactados

Como principal canal de venda de autopeças ao consumidor final, o varejo sofre diretamente com o mercado ilegal. A presença de peças piratas ou sem origem comprovada nas prateleiras não só compromete a credibilidade do setor, como dificulta a competição justa para lojistas que atuam legalmente, pressionando suas margens. Além disso, torna mais difícil para o consumidor médio distinguir entre uma oferta vantajosa e um risco oculto.

Esse cenário desafia o equilíbrio entre competitividade e responsabilidade, exigindo ação coordenada entre poder público, mercado e sociedade. Apesar dos avanços proporcionados pela Lei do Desmonte e intensificação das fiscalizações em estados como São Paulo, o volume de peças ilegais no país permanece alto, alimentado por lacunas regulatórias, canais informais e falta de conhecimento técnico do consumidor.

Representantes do varejo de autopeças têm reiterado essa preocupação. Heber Carvalho, presidente do Sincopeças-SP, alertou para os efeitos econômicos e institucionais da pirataria. Segundo ele, “não se trata apenas de coibir quem vende, mas também de reconhecer que existe uma engrenagem porque há demanda. Se tem quem vende, é porque tem quem compra. Isso vale tanto para consumidores quanto para algumas lojas que ainda atuam à margem da lei”.

Carvalho ressaltou que a evasão fiscal gerada pelo comércio irregular compromete investimentos, empregos e o futuro do varejo automotivo. Por isso, defende que a rastreabilidade seja vista como um ativo — algo que protege o cliente e valoriza o lojista formalizado. “É fundamental que a peça esteja regularizada e acompanhada de nota fiscal. O consumidor precisa ter segurança sobre o que está adquirindo”, concluiu.

Números que ilustram a pirataria de autopeças e o impacto da regulação dos desmanches

  • R$ 12 bilhões: prejuízo anual estimado causado pela pirataria de autopeças no Brasil.
  • 34%: redução nos roubos de veículos em São Paulo nos dois anos após a regulamentação da Lei do Desmonte (2014-2016).
  • 80.869: total de roubos e furtos de veículos registrados em São Paulo em 2024, número inferior aos 111 mil de 2014.
  • 883: estabelecimentos credenciados atualmente junto ao Detran-SP para atuar com desmontes.
  • 1: frequência média anual de visitas realizadas pelo Detran-SP aos desmontes formalizados.
  • Mais de 800: pontos de fiscalização do Detran-SP integrados às bases da Polícia Militar, permitindo cruzamento inteligente de informações.
  • 0,7: aumento médio mensal no número de roubos de veículos associado à presença de um desmanche adicional em uma localidade.