De acordo com Álvaro Massad, coordenador do MBA em Cibersegurança da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a combinação do atraso no amadurecimento digital com a pulverização dos pequenos varejistas criou um ambiente favorável para ações criminosas em larga escala. “O crime está cada vez mais organizado e conhece o setor. Se o varejo de autopeças não se proteger, pode perder não só vendas, mas também a confiança do consumidor como um todo”, alerta o especialista.
O alerta é pertinente. Com perfis falsos cada vez mais sofisticados, que imitam visualmente os canais oficiais das lojas, golpistas têm se passado por varejistas legítimos de autopeças em marketplaces, redes sociais e até em sistemas de busca. A oferta de descontos atrativos, aliada à exigência de pagamento antecipado, continua atraindo vítimas.
“Eles reproduzem com precisão. Criam perfis quase idênticos aos originais e utilizam uma narrativa bem estruturada. O consumidor não desconfia, e o lojista muitas vezes só percebe o problema quando já há dezenas de reclamações circulando com seu nome”, explica Massad.
Segundo o especialista, parte do problema está no fato de muitas lojas ainda não gerenciarem seus próprios canais digitais com planejamento mínimo. Ter perfis oficiais, padronizar a identidade visual e registrar presença em redes sociais — mesmo que não sejam usados ativamente — reduz o espaço para que golpistas atuem se passando pela marca. “Se o nome da sua loja não estiver no Instagram ou Facebook, alguém vai colocar. E pode ser um criminoso. O proprietário precisa ocupar esses espaços, mesmo que não os utilize com frequência”, orienta o professor.
A vulnerabilidade do setor, porém, não está somente na ação dos golpistas, mas também na negligência ou até omissão de muitos varejistas. Senhas fracas, perfis desatualizados, ausência de autenticação em duas etapas e falta de monitoramento facilitam a vida dos criminosos — especialmente em pequenas e médias empresas. “Em empresas pequenas, muitas vezes a senha do Instagram é compartilhada entre dois ou três funcionários e não é trocada há meses. Não há política ou rastreabilidade, o que equivale a abrir a porta e receber o ladrão com tapete vermelho”, afirma Massad. “Eles conhecem o setor, sabem que a autopeça é um produto de busca urgente, que o comprador está com o carro parado e que o preço é decisivo. Criam lojas falsas, colocam preços 30% abaixo do mercado, anunciam no Google e Instagram e desaparecem após o pagamento. E o cliente ainda marca o perfil verdadeiro para reclamar.”
Essa cadeia de erros, iniciada pelo golpista e alimentada pelas falhas do próprio varejo, gera um efeito dominó. Afeta a confiança do consumidor, prejudica a reputação da empresa legítima e contamina todo o setor. O risco é que o consumidor deixe de comprar online não só daquela loja, mas de qualquer outra do segmento. “Se a prática se torna comum, o cliente associa o golpe a todo o setor e passa a desconfiar de qualquer e-commerce de autopeças, preferindo pagar mais caro na loja física a correr o risco de ser enganado pela internet”, alerta Álvaro Massad.
Nem os varejistas mais tradicionais estão imunes
Embora os especialistas chamem atenção para a sofisticação crescente dos golpes digitais, o impacto é sentido no cotidiano de empresas tradicionais do setor. Gigantes como Rocha Autopeças, de Campinas (SP), e Jocar, de São Paulo, passaram a receber relatos de consumidores que pagaram por peças e não receberam os produtos, em sites como Reclame Aqui, pouco antes de descobrirem que golpistas estavam usando seus nomes, logotipos e endereços.
“Se você vê a página, parece nossa. Eles copiam tudo, até o nome de funcionário que aparece em vídeo institucional. Já tive cliente vindo buscar peça na loja achando que tinha comprado conosco, mas era golpe”, conta Roberto Rocha, proprietário da Rocha Autopeças.
Enquanto isso, os varejistas tentam se proteger com avisos nas redes sociais, boletins de ocorrência, notificações extrajudiciais e denúncias em plataformas digitais. No entanto, essa dinâmica é desgastante e, na maior parte do tempo, pouco eficaz para conter a onda.
Contrabando
O primeiro alerta de golpe envolvendo a Rocha Autopeças surgiu em 2019, quando um ex-funcionário identificou no Facebook uma página com logotipo e imagens idênticas às da empresa. Os preços, muito abaixo da média do mercado, chamaram atenção. A investigação revelou que a operação falsa era mantida por uma empresa sediada no Paraná. “Eles revendiam peças contrabandeadas, conforme apuramos na época. A página foi derrubada, mas os casos só aumentaram desde então”, relata Roberto Rocha.
Com a popularização de anúncios pagos e impulsionamentos em redes sociais, os golpistas intensificaram suas estratégias para ganhar visibilidade. “Aparecem entre os primeiros resultados no Google, têm páginas bem feitas e números de WhatsApp com fotos de nossos funcionários. É muito convincente”, comenta o empresário.
O impacto ultrapassa o prejuízo à imagem. Em um dos casos mais graves, um consumidor de Brasília (DF) pagou R$ 3.600 por um lote de peças — valor que, segundo ele, equivalia a mais de R$ 20 mil em produtos. O cliente, que integrava a Polícia Civil, localizou a loja verdadeira e acionou as autoridades. “Felizmente, o investigador entendeu que não tínhamos relação com aquilo. Veio conversar pessoalmente e, quinze dias depois, prenderam sete envolvidos em Campinas, São Paulo e Praia Grande. Mas o golpe voltou a ocorrer dois meses depois”, relata Rocha.
Em outro caso, Roberto Rocha precisou comparecer a uma audiência judicial após um consumidor acusar a loja de venda fraudulenta. Segundo ele, as plataformas digitais não têm sido aliadas dos lojistas nessa luta. “Você denuncia, mas demoram a agir. Quando o fazem, a página já migrou para outro domínio ou número. Já vi golpistas copiarem até o aviso que colocamos nas redes sociais alertando sobre o golpe e usarem isso contra nós”, lamenta o empresário.
Jocar combate danos causados por empresa quase homônima
A paulistana Jocar, uma das pioneiras e mais tradicionais no varejo de autopeças com e-commerce próprio, também teve seu nome envolvido em golpes. Apesar de operar exclusivamente por seu site oficial — sem intermediação de marketplaces ou redes sociais —, a empresa passou a receber relatos de clientes que foram enganados por falsas promessas em seu nome.
“Geralmente, começa com um anúncio no Facebook ou Google. A pessoa clica, é direcionada ao WhatsApp, fecha a compra, faz o Pix e não recebe nada. Depois, procura a gente para reclamar, achando que fomos nós”, conta Moisés Sirvente, diretor da empresa.
De acordo com ele, os casos aumentaram a partir de 2024. Em um deles, um consumidor relatou no Reclame Aqui que pagou por retrovisores e quebra-sol para Fiat Idea, mas não recebeu o pedido. Os golpistas ainda solicitaram a instalação de um aplicativo externo para “acompanhar o envio”, aumentando os riscos.
Em outra situação, uma cliente da Grande São Paulo comprou um cinzeiro de painel via WhatsApp e pagou via Pix após suposta emissão de nota fiscal. Ao tentar obter o rastreamento, foi bloqueada. O link utilizado na transação levava a um site com domínio e identidade visual semelhantes à Jocar original.
A resposta da empresa tem sido sempre a mesma: boletim de ocorrência, atuação jurídica e alertas frequentes nas redes sociais. Moisés chegou a enviar notificação extrajudicial a perfis que usavam o nome “Joc Car Autopeças” — contato que, porém, não gerou retorno.